Tudo é um filme de gangster se você for Martin Scorsese o suficiente.
O mestre pegou essa sua bagagem para construir esse filme de gangster, só que falando de um caso real: em 1920 descobriu-se que a terra da tribo americana Osage continua muito petróleo. Isso foi um chama (sem trocadilhos) para que o homem branco se instalasse e tentasse ao máximo subtrair o dinheiro dos então ricos índios. Além de serem empregados deles, os ambiciosos americanos acabavam por casar-se com as índias para se beneficiar de seus bens. Em muitos casos inclusive assassinavam as próprias esposas para ficar com o dinheiro. Essa prática ficou tão sistematizada e os índios eram tão indefesos perante as autoridades locais que nada resolviam e às vezes nem investigavam que o próprio diretor chamou esse cenário de “genocídio tranquilo” e silencioso.
Nesse cenário conhecemos Ernest (Leonardo DiCaprio de “Não Olhe Para Cima”) jovem limitado que acabara de voltar da 1ª Guerra Mundial e se hospeda na casa do tio, o poderoso fazendeiro Bill King Hale (Robert De Niro de “Vigaristas em Hollywood”), o homem que comanda os tempos e movimentos na cidade. Sem saber que está sendo manipulado Ernest conhece e se apaixona pela índia Mollie (a então desconhecida e promissora Lily Gladstone). Nesse meio tempo as mortes de índios e índias que já ocorriam, passam a se intensificar, levando Ernest a se envolver num dilema amoroso e criminoso.
Não era para ser assim: no roteiro escrito por Eric Roth e Martin Scorsese, DiCaprio era o xerife Tom White que chegava na cidade para investigar os assassinatos e daí havia uma série de flashbacks com os demais personagens. Mas o ator viu no personagem de Ernest a complexidade tamanha capaz de poder desempenhar uma performance diferenciada e assim convenceu a todos a mudar a abordagem da obra, sendo ela então mais direta e cronologicamente correta. Tanto que o xerife do Bureau de Investigação Americana (que no futuro iria se transformar na CIA) só aparece depois da metade do filme e é interpretado pelo sempre competente Jesse Plemons (“Sorte de Quem?”).
O filme é longo sim, mas são 3 horas e meia de puro conteúdo, fotografias impecáveis e atuações belíssimas. A cultura Osage é mostrada em sua pureza e o diretor abre várias concessões para que a magia da tribo se manifeste como visões dos personagens indígenas, mas ao mesmo tempo foca na crueza das atitudes humanas. DiCaprio faz uma de suas melhores atuações justamente por ser um personagem no limiar entre o incapaz, o limitado, o vilão e o apaixonado. A arrogância de não saber o limite da sua própria ignorância cria várias camadas no protagonista. Na mão de outro ator, ele seria apenas um coadjuvante que talvez satisfizesse a primeira visão de roteiro de Scorcese.
De Niro também dá o seu eventual show quando o personagem tem um calibre desse tipo e seu desempenho não surpreenderia se rendesse mais uma indicação ao Oscar junto com DiCaprio. Entretanto é Scorcese que faz a diferença ao criar uma dinâmica entre os personagens que liga até o menor coadjuvante à toda a teia conspiratória que se passa, como também faz a mesma ligação entre os índios e entre eles e o homem branco. É essa dinâmica que sustenta um filme tão longo onde mesmo que o espectador sinta o peso do tempo, também fica na cadeira preso nessa trama que abraça o suspense a uma jornada psicológica.
O desfecho é ousado, pois o diretor muda completamente a narrativa e faz o público pensar muito mais do que ver e também muda a percepção de impacto, provando que o diretor sempre se reinventa na maneira de contar suas histórias.
Baseado no livro de David Grann, “Assassinos da Lua das Flores” já se configura como um daqueles clássicos para sempre, mas como este para sempre ainda está só começando, a temporada do Oscar deve começar muito bem com essa produção. Consegue-se se contar uma história com ritmo e conteúdo, mas também muito pensamento crítico envolvido, o que faz de algo que aconteceu há cerca de 100 anos ainda ser muito atual.
Curiosidades:
- Apesar do filme focar na conspiração centralizada na história com Ernest e King Hale, na realidade o “genocídio tranquilo” era uma prática de toda a cidade que corrompia desde policiais, médicos e todos os segmentos com vários “cabeças” por trás dos assassinatos.
- Na realidade King Hale tinha na época dos acontecimentos do filme, 45 anos. O diretor achou que essa informação seria irrelevante e colocou Robert De Niro que já tem seus 80 anos (e foi nessa idade que o King Hale de verdade morreu).
- Martin Scorcese finalmente trabalha com seus dois “musos” no mesmo filme: Robert De Niro, seu parceiro de longa data e Leonardo DiCaprio, também parceiro desde “Gangues de Nova York”. O mais interessante é que quem indicou DiCaprio para Scorcese pela primeira vez foi o próprio De Niro que já tinha atuado e dirigido Leonardo DiCaprio em sua estréia no cinema com “O Despertar de um Homem” de 1993.
- Lily Gladstone não fez audição para o filme. Assim que Martin Scorcese falou com ela via Zoom, ele já sabia que ela seria a escolhida.
- Na realidade Mollie é 10 anos mais velha que Ernest. Enquanto isso, Lily Gladstone é 12 anos mais jovem que DiCaprio.
Ficha Técnica:
Elenco:
Leonardo DiCaprio
Robert De Niro
Lily Gladstone
Jesse Plemons
Tantoo Cardinal
John Lithgow
Brendan Fraser
Cara Jade Myers
Janae Collins
Jillian Dion
Jason Isbell
William Belleau
Louis Cancelmi
Scott Shepherd
Everett Waller
Talee Redcorn
Yancey Red Corn
Tatanka Means
Tommy Schultz
Sturgill Simpson
Ty Mitchell
Gary Basaraba
Charlie Musselwhite
Pat Healy
Steve Witting
Steve Routman
Gene Jones
Direção:
Martin Scorsese
História e Roteiro:
Eric Roth
Martin Scorsese
Produção:
Dan Friedkin
Daniel Lupi
Martin Scorsese
Bradley Thomas
Fotografia:
Rodrigo Prieto
Trilha Sonora:
Robbie Robertson