O que faz dessa produção, indicada ao Oscar em 11 categorias, a melhor comédia do ano é seu conteúdo. Porque piada é fácil de fazer. Piada engraçada, nem tanto. Mas um humor profundo que faz o espectador gargalhar e refletir ao mesmo tempo, precisa de muita técnica e talento, o que tanto o elenco quanto o cineasta grego Yorgos Lanthimos, do também premiado “A Favorita”, tem de sobra.
Aqui ele mistura feminismo com um conto inspirado em “Frankenstein” para falar sobre a emancipação da mulher como indivíduo num mundo machista e muitas vezes misógino.
Mas antes a premissa: numa realidade distópica, o cientista Dr. Godwin (Willem Dafoe de “Asteroid City”) dá uma de Dr. Frankestein e a partir de um cadáver, constrói e reanima quem ele chama de Bella, interpretada po Emma Stone, que já trabalhou com o diretor em “A Favorita”.
Apesar de ter um corpo adulto, Bella “nasce” com o cérebro de uma criança e vai aprendendo tudo aos poucos. Ela é prometida ao assistente de Godwin, Max (o ainda desconhecido Ramy Youssef), mas é quando conhece o inescrupuloso advogado Duncan (Mark Ruffalo de “Projeto Adam”) que sua sede de conhecimento a faz fugir com ele e viver várias aventuras.
Primeiro é importante entender que o machismo é colocado no roteiro de forma estrutural, permeando as várias relações de Bella, seja com a paternidade através de seu cientista / pai, seja através do amor com Max (sim, o machismo também vem de boas intenções), seja do desejo com Duncan ou ainda do puro sentimento de posse com personagens que virão mais à frente.
Percebam nos detalhes que, por exemplo, Bella sempre chama o Dr. Godwin de God (referência a Deus), sendo que quase todos os personagens querem prender Bella fisicamente ou psicologicamente, mesmo com o melhor intuito. Inclusive a maioria das melhores piadas são as porradas que ela, sem ter a mínima consciência, dá no machismo e na misoginia.
O cerne das piadas e da reflexão é justamente pegar uma mente “limpa” como a da protagonista e ver a hilária e ao mesmo tempo importantíssima maneira com o que ela lida com o preconceito. Aliás, os tradutores brasileiros estão de parabéns por conseguirem que as piadas legendadas em português tivessem o mesmo impacto da língua inglesa.
O elenco está afinadíssimo, mas Emma Stone e Mark Ruffalo são personagens fora da curva. O feito de Stone ser indicada por uma personagem quase cômica já diz tudo a que ela veio: a jornada evolutiva dela se mostra tanto no âmbito físico quando emocional e sua sede inabalável de experiências e conhecimento são encantadoras. Enquanto isso Ruffalo é o tão famoso hetero top do século passado, sai de sua zona de conforto e demostra um timing cômico impecável.
Finalmente o design de produção é meticulosamente desenhado para submeter o caos de cidades que parecem ser feitas de sonhos ou saídas das obras de Júlio Verne.
O diretor de fotografia Robbie Ryan (“Sempre em Frente”) foi disruptivo em suas cores saturadas, lentes amplas contrastando com enquadramentos que fazem o espectador ver o filme como se estivessem visualizando a partir de um “olho mágico” de porta de apartamento, para se passasse a impressão de literalmente estar enxergando em outra dimensão.
Baseada na obra de Alasdair Gray, “Pobres Criaturas” é fascinante desde a mensagem, ao senso de humor, passando por atuações inesquecíveis e uma direção fora da caixa. Merece tudo o que ganhar e muito mais.
Curiosidades:
- A protagonista tem nome e sobrenome iniciando pela mesma letra (Bella Baxter – BB). O único personagem com a mesma característica é o único homem que aceitou Bella do jeito que ela é (Max McCandles – MM).
- A maior parte do filme foi feita num grande estúdio com vários galpões na Bulgária onde foram construídos praticamente todos os cenários.
- O cabelo de Bella é preto por acaso. Era para ser castanho escuro, mas o departamento errou na tinta. Quando o diretor de fotografia fez testes, percebeu que o resultado em cena ficaria melhor com o preto.
- A maquiagem de Willem Dafoe demorava 4 horas para ser aplicada e 2 horas para se retirar. Ela tinha que estar no set às 4h da manhã para começar o processo e sem dormir, porque precisava ajudar a equipe.
- Mark Ruffalo tomou um trote de Willem Dafoe: Rufallo estava muito inseguro e achava que não conseguiria e iria ser demitido. O ator Oscar Isaac estava filmando nas proximidades e Dafoe o chamou para o trote. Daí os dois chamaram Ruffalo e disseram que ele seria substituído por Isaac. Rufallo quase surtou, mas tudo acabou em risadas.
- Primeiro filme de Yorgos Lanthimos onde se criou uma trilha sonora ao invés de músicas já prontas.
- Muitas decorações (janelas, postes, roupas) foram desenhados para lembrar genitálias, sejam femininas ou masculinas através de objetos fálicos.
- O cartão postal que Bella manda para o Dr. Godwin, está com o endereço 12 Whiston Street. Este endereço existe mesmo em Londres.
Ficha Técnica:
Elenco:
Emma Stone
Mark Ruffalo
Willem Dafoe
Ramy Youssef
Kathryn Hunter
Vicki Pepperdine
Christopher Abbott
Jerrod Carmichael
Suzy Bemba
Hanna Schygulla
Keeley Forsyth
Direção:
Yorgos Lanthimos
História e Roteiro:
Tony McNamara
Produção:
Ed Guiney
Yorgos Lanthimos
Andrew Lowe
Emma Stone
Fotografia:
Robbie Ryan
Trilha Sonora:
Jerskin Fendrix
