O melhor cinema é aquele que provoca sensações. Amor, alegria, riso, medo, saudade, todos esses sentimentos são provas de que uma produção conseguiu atingir seu público. Dito isso, essa co-produção entre Dinamarca e Holanda, talvez seja um dos filmes mais agoniantes e desconfortáveis do ano. O que é ótimo.
O desconforto começa logo de início com uma trilha sonora alta e sombria, mesmo num ambiente alegre, como se o diretor Christian Tafdrup e o compositor Sune Kølster estivessem fazendo uma brincadeira de mal gosto com o espectador.
Com um elenco desconhecido casal Bjørn e Louise (Morten Burian e Sidsel Siem Koch) conhece o casal Patrick e Karen (Fedja van Huêt e Karina Smulders) se conhecem em férias na Itália e se dão muito bem. Semanas depois Bjørn e Louise são convidados a passar o fim de semana na casa de Patrick e Karen. Tudo começa bem até que os anfitriões passam a agir de forma estranha.
O roteiro acerta em mostrar os pequenos conflitos de casal entre Bjørn e Louise, mostrando o contexto de suas vidas para que o espectador crie afinidade com eles, mas ao mesmo tempo, mostrando como – a princípio – seriam tão falíveis quanto Patrick e Karen.
Mas o filme não para de jogar uma trilha que prenuncia a tragédia, mesmo com apenas pequenos e quase irrelevantes indícios de que algo está errado. Há uma escalada emocional de conflito entre os casais, mas que quase nunca ultrapassa o trivial, o que me lembrou do filme e peça teatral “Deus da Carnificina” (só que aqui como sendo um drama de situações), e por isso, por mais que o público entenda que obviamente algo ruim deve acontecer, o momento sempre é chocante.
Aliás, é tanto que espectador e o casal convidado partilham praticamente do mesmo choque de uma forma que o cinema comercial americano jamais iria mostrar (ah, Hollywood já está fazendo o remake desse filme com James McAvoy).
Um ponto que o roteiro trabalha muito bem é a barreira linguística: o casal convidado fala dinamarquês, enquanto o casal anfitrião fala holandês, sendo que se comunicam entre si em inglês. Mas quando falam separadamente, é sempre em sua língua nativa e a legenda só traduz o casal convidado.
O golaço da obra é que o mal estar crescente durante todo o desenvolvimento da trama se junta com o choque brutal do último ato e deve deixar todo mundo atordoado. Essa reação do público se torna fundamental para entender os movimentos do casal que seria a vítima.
“Não Fale o Mal” é um soco no estômago que o espectador vai ter que carregar durante algum tempo. É daqueles filmes que vai fazer qualquer um desejar ver uma comédia romântica logo após para tentar minimizar o clima sombrio que se instala. E por isso é tão bom.
Obs: O filme é tão bom que há uma falha MONUMENTAL de roteiro, mas ninguém percebe. Veja na parte de Spoilers mais abaixo.
Curiosidades:
- Casal Fedja van Huêt e Karina Smulders que interpretam Patrick e Karen são casados de verdade!
- Os papéis de Patrick e Karen foram o casting mais difícil: ninguém queria fazer esses papéis por serem malvados num nível jamais imaginados. Inclusive Fedja van Huêt e Karina Smulders fizeram audição para o papel, mas declinaram logo após. O diretor Christian Tafdrup gostou um bom tempo até convencê-los a aceitar.
- O diretor Christian Tafdrup criou o roteiro a partir de uma experiência pessoal: ele e a esposa também conheceram um casal gente boa numas férias e semanas depois esse casal os convidou para um fim de semana com eles. Mas Tafdrup educadamente declinou. Daí ele ficou pensando como seria se o casal tivesse algo mal por trás. Claro que o tal casal na realidade não é assim e eles continuaram se comunicando por um bom tempo.
- O início do filme (as férias na Itália) foi filmado no fim das gravações.
- O filme demorou 1 ano para ser filmado, pois foi na época da pandemia e então as filmagens eram constantemente interrompidas por lockdowns temporários.
- A casa do casal anfitrião onde se passa a maior parte do filme teve que ser demolida ao fim das gravações.
***SPOILERS – SÓ LEIA SE JÁ ASSISTIU AO FILME***
- A falha de roteiro é que seria praticamente impossível este casal não ter sido preso até então. Segundo o início do terceiro ato, todos os crimes foram cometidos a partir daquela casa, já que na casinha ao lado, há uma coleção de todas as malas e fotos de inúmeros casais que passaram por lá. É claro que muitos deles compartilharam a localização. Também seria óbvio que a polícia investigaria e facilmente chegaria lá. Só que o filme provoca sensações tão fortes que isso passa batido.
Porque existe essa falha tão grande?
- Porque o roteiro foi escrito para que o casal predador fizesse parte de uma seita, sendo que no último ato, a seita apareceria com outros casais vítimas também. Essa seita controlaria em última instância a polícia, o que a impediria de investigar. Devido a restrições orçamentárias e problemas logísticos por conta da pandemia de COVID-19, essa idéia acabou não se materializando, deixando então a história do casal, como se fossem só eles mesmo.
Ficha Técnica:
Elenco:
Morten Burian
Sidsel Siem Koch
Fedja van Huêt
Karina Smulders
Liva Forsberg
Marius Damslev
Hichem Yacoubi
Direção:
Christian Tafdrup
História e Roteiro:
Christian Tafdrup
Mads Tafdrup
Produção:
Jacob Jarek
Fotografia:
Erik Molberg Hansen
Trilha Sonora:
Sune Kølster