Há uma cena, logo no início da história em que o diretor da emissora de TV Harvey (Dennis Quaid de “Eu Só Posso Imaginar”), o estereótipo de macho de meia idade ganancioso, machista e misógino senta numa mesa de restaurante de frente para a estrela de TV Elisabeth Sparkle que acabara de completar 50 anos (Demi Moore de “O Peso do Talento” que nas filmagens já estava com 61), e diz que o tempo dela já passou por conta da idade logo antes de demití-la de seu programa de variedades, para logo no minuto seguinte abraçar outro apresentador muito mais velho que ela e parabeniza-lo pelos altos números de audiência.
Esse é o nível sofisticado e inteligente de crítica social de “A Substância”. Detalhe: é um filme de terror trash.
Para quem tem mais de 35 anos, é fácil de lembrar na década de 90, no engatinhar da internet, a unanimidade que era a beleza e sex appeal de Demi Moore. Atualmente não existe um paralelo de como a atriz foi referência em sensualidade, tudo bem que talvez pela tecnologia nos trazer muito mais opções que na época, mas ainda assim, vale a analogia. Por isso que além de ter uma história cerebral e cheia de referências clássicas, o fato da protagonista que se depara com a sua decadência social e física perante a própria idade ser Demi Moore chega a ser tão emblemático quanto a trama que se quer contar.
Nesse contexto, Elisabeth se depara com uma misteriosa organização que entrega para ela uma substância capaz de criar uma espécie de “outro eu” mais jovem e mais perfeito, que vai se apresentar na pele de sua contraparte Sue, interpretada por Margaret Qualley de “Tipos de Gentileza” que alça vôos cada vez maiores em Hollywood. Tudo isso se ela seguir determinadas regras. Do contrário, efeitos catastróficos podem acontecer.
David Cronenberg que se cuide, pois a desconhecida diretora Coralie Fargeat fez sua estréia no cinema inspirada em seu estilo e ainda foi além, com toques de pura genialidade, como na abertura com a comparação entre a vida da protagonista e sua estrela na calçada da fama que dará uma rima sensacional com o desfecho. Seus enquadramentos, edições e a ótima trilha sonora de Raffertie (“One Way”) já pauta o espectador que ele está numa realidade paralela. O próprio figurino dos coadjuvantes e a maneira como eles se movem (vejam as cenas de Harvey com os acionistas da emissora) indica essa atmosfera de pequenos absurdos que servem à causa da narrativa.
A partir do segundo ato, o filme entre no modo “Dr. Jekyll e Mr. Hyde” numa dobradinha espertíssima entre Moore e Qualley que vai escalando tanto no nível de tensão e loucura quando no deterioramento físico, chegando num clímax de trash poucas vezes visto numa tela de cinema. Nessa hora a diretora não economiza e, ao ter preparado o público para absurdos dentro do escopo da trama, cria uma das sequências de trash mais fascinantes da história.
Finalmente, nunca é demais falar: Demi Moore entrega tudo. Ela se entrega como poucas e tem uma performance que vai do drama ao humor sem desequilibrar em nada. Se não for indicada a prêmios é por puro preconceito ao gênero de terror trash.
“A Substância” é desde já um dos melhores filmes do ano, que consegue entregar terror, sangue e tripas ao mesmo tempo em que discute de forma profunda a indústria do machismo, principalmente no show business e como isso faz as mulheres reféns de uma beleza idealizada através de procedimentos estéticos muitas vezes radicais e desnecessários.
Curiosidades:
- Duas trilhas sonoras de clássicos que aparecem no filme: “Vertigo – Um Corpo que Cai” (1958) de Alfred Hitchkock e “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968) de Stanley Kubrick.
- Dennis Quaid já namorou com a mãe de Margaret Qualley, a também atriz Andie MacDowell, no início dos anos 2000.
Ficha Técnica:
Elenco:
Demi Moore
Margaret Qualley
Dennis Quaid
Hugo Diego Garcia
Oscar Lesage
Direção:
Coralie Fargeat
História e Roteiro:
Coralie Fargeat
Produção:
Tim Bevan
Coralie Fargeat
Eric Fellner
Fotografia:
Benjamin Kracun
Trilha Sonora:
Raffertie